domingo, 22 de junho de 2008

Conto: Uma Síncope No Existir. Parte 1


Já me disseram que “há um tempo e um lugar para tudo na vida”.

Belas palavras. Reunidas assim, passam até mesmo um tom poético gostoso de ouvir. Bom de ouvir apenas por seu ar literário, apenas por soar sabedoria. Mas quando me peguei pensando nisso não estava lá com tanta sensibilidade para apreciar sua beleza. Estava vindo de uma crise. Não gosto dessa palavra; ela passa a impressão de ser muito dramática. Mas eu penso que o que eu presenciei naqueles tempos tinha um quê de drama; não um dramalhão meloso, mas uma anormalidade que eu ainda não sabia lidar. Era uma verdadeira crise de identidade. Uma ausência de motivação. Um não querer viver; pois a certeza de que o mundo não cederia aos meus planos, ou aos meus objetivos, por mais que eles ainda não tivessem contornos definidos, era bem evidente. Há um tempo e um lugar para tudo na vida; Que tremenda sensação de impotência me dominou ao ouvir isso! Afinal de contas, eu queria que algo acontecesse para me provar que a vida valia à pena ser vivida. Queria um propósito! E ouvir isso não me deixava lá muito aliviado. Pelo contrário: explodia minha angustia! Quem me falou, pretendia ajudar de alguma maneira, eu sei disso. Mas hoje eu ainda posso recordar que quando ouvi isso, desencadeou-se um desmoronamento dentro de mim, que poderia ter me soterrado definitivamente, se, ela, não existisse. Ela.

É fascinante o fato de todo esses momentos de incertezas, em que você pode vir a tomar decisões comprometedoras, que podem vir a revelarem-se posteriormente como atitudes precipitadas, são totalmente esquecidas e desconsideradas quando se toma conhecimento da existência de algo, ou de alguém.

A simplicidade da vida chega com todo o seu vigor abalando nossos alicerces, e fortalecendo nossos fundamentos. Mover nossos motores pode, quem sabe, enfim, ser gratificante. Uma fagulha de esperança pede para ser alimentada.

Antes, eu reconhecia que estava caminhando para um destino nem um pouco louvável. Na verdade, eu não caminhava: eu corria. Jogava-me rumo a uma situação incontornável. Uma situação em que me veria num futuro próximo, sem nenhum motivo de ser, de acontecer. Do tipo que se esconde da humanidade e se auto-considera um ilustre desconhecido. Ilustre por manter-me na posição privilegiada de espectador da desgraça humana. Um sujeito que não se tornou personagem da vida de ninguém, nem protagonista da própria, quem sabe um antagonista... Do tipo que suporta o emprego unicamente para ter meios de garantir a subsistência do que resta de seu ego; passando todo o expediente de forma entorpecida como se o corpo estivesse ali, exercendo suas atividades mecânicas rotineiras, mas o espírito em algum outro lugar, em algum lugar que eu não saberia explicar onde fica exatamente. Após o itinerário, iria para um bar, sentaria em um local discreto onde pudesse observar todo o movimento. Na verdade, não haveria lá uma circulação digna de ser espiada, pois freqüentaria ambientes povoados na grande maioria por sujeitos desgostosos e frustrados. Poderia vir a me considerar de alguma maneira diferente. Não pertencente ao mundo. Uma criatura que nasceu unicamente para testemunhar e provar na pele a miséria cruel da vida humana. Não odiaria as pessoas, talvez odiasse apenas a mim; odiaria, provavelmente por ter deixado a situação chegar àquele ponto; por não ter findado ela enquanto havia tempo. Ou não: poderia esquecer-se de mim mesmo. Poderia deixar de pensar nas coisas e apenas continuar andando por ai, sem mais nem menos. Totalmente desapegado. Sem apego nenhum aos outros e a mim. Por isso não poderia odiar. O ódio dar-se quando se tem valor por algo. As coisas, no entanto, não teriam valor algum. Talvez eu não esteja expressando essa sensação da forma que gostaria. Mas o que é certo e muito claro era o fato de que nada muito agradável estava por me esperar.

Seria um abandono, a vida não estava me proporcionando o que eu esperava, então, eu desistiria da busca. Vendo-me naquela época, vejo que seria um percurso totalmente equivocado, pois se quer tinha começado a procurar verdadeiramente.

Mas eu ainda contava com uma idéia persistente: eu precisava de um motivo; uma razão para voltar a acreditar em quem afirma que a vida é bela!

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Conto:O Bilhete Final De Um Artista Consumido


    Esta narração que segue, foi legado por um jovem talentoso sorvido na angústia da elaboração de seu projeto artístico, que era almejado por ele, ser alçado à reprodução maior e perfeita de suas íntimas inspirações profundamente caóticas. Reconhecendo o tremendo esforço exigido na atividade criadora de extirpação e agrupamento coerente em matéria final que tragou suas energias aos limites da possibilidade de exteriorizar as inspirações vindas do labor criativo em toda plenitude potencial. Em todo caso, transmitiu o seguinte relato:

As horas, que ao restante da humanidade é destinado o entorpecer sensível da alma em condição de repouso com o fito de pretender recuperar as energias vitais a fim de conseguir permanecer contínuo, no seguinte dia, o convívio rotineiro, passo imerso em esforços psíquicos que a cada instante passado vai esvaindo minhas faculdades mentais e potencias físicas. Isso já perdura há dias... 

A concentração, por vezes, torna-se um martírio desgastante que me renega à frustração que não consigo evitar.

Como que uma vastidão de vontades impossíveis de serem expressas convivesse de forma cada vez menos suportáveis dentro de meu ente. Mesmo empregando esforços para esquivar-me da angústia de não conseguir atingir seu fim, no final, eles acabam por me prejudicar da mesma maneira: pois na situação que me encontro, não posso dar-me ao luxo de desviar as atenções e energias do projeto que pretendo elaborar. A ele, todos os meus focos devem ser destinados.     

Além da elaboração mental da obra para que ela venha a ser concebida de modo a adquirir contornos concretos e sincrônicos com o que pretendia a priori, devo utilizar de recursos e canais, que possam vir a interagir com os sentidos dos receptores a que pretendo atingir, adequadamente, pretendendo estabelecer uma comunicação precisa entre eu, autor, e os admiradores... Isto é: sentir-me-ei desgostoso caso os escopos de minha idéia inicial não impetrem e atinjam minhas finalidades reais e primeiras.

 Para que minhas interações preliminares sejam bem sucedidas, é necessária a escolha da linguagem adequada ou mesmo a combinação de mais de um modo de expressão. Portanto, o ato de dar à luz uma obra está intrinsecamente atrelado a essa capacidade de utilizar-se de forma concisa e coerente das idéias e da linguagem. Vêem-se aqui os percursos desgastantes a que me submeti na sua elaboração. Compreendendo essa diligência vigorosa que, imperiosa se abate a mim, torna-se inteligível a quem observa meu sofrimento toda essa razão do desgaste e esfalfado que me desampara em lassidão.

Essa manipulação de ferramentas metódicas que exigem maquinações sistemáticas no processo de externar a minha ilustração mental por meio de um exercício de abstracionismo revela-se grande sensação usufruída de tal modo subjetivo, a ponto de ter sua reprodução opulenta em complexidade dificultando e personificando-se em vultoso obstáculo a sua reprodução didática, mesmo que caricatural quando almejo elucidar a quem ler, esses meus registros em verba, toda a minha aflição.

A linguagem é o suporte que fornece corpo á idéia! Essa é a primazia que não pode ser desconsiderada jamais. Isso não posso deixar de estimar!

Levando em consideração esse estágio de entendimento, é inevitável a conclusão de que uma obra só existe ao ser transmitido através de uma linguagem; podendo ela ser oral, escrita, gesticulada, emitida, desenhada... É o canal pelo qual o pensamento se exprime.

A idéia ao se encontrar no estágio embrional de pensamento, permanece limitada às sensações, portanto, sujeitas até mesmo ao esquecimento, caso eu, como o afeiçoado, não lance a cabo seus projetos fieis de efetuação. Essa atitude impetuosa já foi por mim tomada, tomei então, o encargo de optar pelo meio o qual considero conveniente utilizar para dar contornos sólidos à idéia. A partir dessa decisão, iniciei um procedimento de formalização, ao iniciar a construção da estrutura da cria. Esse seria o processo criativo de materialização de um conceito surgido.

 Para encarregar-se de produzir algo coeso, eu deveria valer-se de uma racionalidade matemática na engenharia da elaboração mental; a simples utilização da emoção se revela insuficiente, pois a idéia deve ser encaminhada e cunhada à capacidade construtiva de um corpo coerente. Daí a necessidade de se operar com propriedade as linguagens. Na confecção do construto final, essa habilidade racional é imprescindível...

Nesse ato de plasmar a idéia, minha consciência precisou estar em um alto nível de sensibilidade, para que a concepção mantenha maior proximidade possível do protótipo visualizado no intelecto. A ilustração nascitura carece de toda a engenharia de elaboração na sua confecção definitiva.

É nesse ponto específico que se faz necessário uma perícia no ato de controlar os instrumentos a disposição, realizando todo um rito liturgial na geração do feito. Requerendo tremenda criatividade e inspiração.

A noção e a certeza que ele, o resultado final, deve ser submetido e maleado à mente intelectual, é essencial, pois jamais poderia permitir que a capacidade de criação fosse limitada pelas possibilidades de concebimento.

Essa experiência de criação artística é um processo íntimo, onde devo me encontrar completamente absorvido em minha concentração, de modo que ao deparar-se com o fluido de impressões, ao configurar a imagem de criação no plano real, consiga manter a coerência com meu desejo inicial. Nesse procedimento, envolve-se uma gama de fatores, como a sensibilidade, a técnica, o método, a emoção, a própria razão, que convergem formando a substância última. As próprias convivências e significações de minhas experiências pessoais presenciadas e vividas exercem influência direta.

No momento em que venho a compreender que externei toda a inventividade a qual submeti a obra, enfim, ela pode vir a criar vida própria, tornando-se um organismo vivo que mescla meus próprios valores, opiniões, vivências, cultura, significados emotivos, portanto, uma fiel caracterização da minha persona. A obra produzida torna-se representativa da personalidade do criador e, obviamente, do estado psíquico que se encontrava nas fases de produção, sendo portadora de impressões ocasionais do seu período de desenvolvimento.

Passa aí, a integrar com o sistema secular de registro do patrimônio intelectual e cultural da civilização. Ganhando unidade, a obra vem a encaixar num contexto mais amplo. Ultrapassando o estágio simples de matéria para mutar-se em um consigno de uma mentalidade individual. A minha.

Na obra finalizada, concentra-se uma realidade pessoal, que porta-se de forma sincrônica ou não com a realidade objetiva dos fatos, e, assim, forma um universo que poderá vir a ser autônomo a aquilo que evidentemente é e faz parte.

Mediante a dimensão atmosférica e o estado de animo desgastado a qual estava envolvido, por período de tempo indeterminado, pois, minhas competências já fadigadas não acendiam em entusiasmo, dei-me conta de que já não podia contar com a realização plena que almejava primitivamente.

Acredito que as criaturas humanas vivem para legar algo à humanidade, e não sendo capaz de perfazer brotar o meu objeto pessoal de satisfação, não conseguirei organizar uma conjectura de motivos para me deixar o mínimo confiante e seguro a encarar as desventuras e frustrações que estão por vir na minha existência.

Se para fazer nascer uma cria, uma obra ou um feito, carece e, é requerido uma mentalidade sistemática, fixando a mente, visando à concentração de esforços pessoais, objetivando que essa fixação possa, quem sabe, conduzir à sua concretização, no instante que reconheço-me como incapaz de alcançar essa condição, passo a considerar com seriedade a  série de motivos e razões para dar um fim definitivo aos meus conflitos e afecções psíquicas.

Vida à cria de quem for! À arte do desconhecido que venha a surgir!

Morte a mim, criador. 

segunda-feira, 9 de junho de 2008

A Crônica Do Descompasso.


Ao se conquistar o entendimento das relações humanas, quando suas ligações e formas de vínculo tornam-se inteligíveis ao seu entendimento, nas dimensões do possível, ou ao menos acreditando que elas pareçam compreensíveis a si, em sua completude e complexidade, o sujeito observador das mesmas, enfim, passa a ser brindado com situações em que é alçado à categoria de espectador privilegiado de situações e conjunturas incoerentes, por vezes, como a sua própria gênese e essência: a natureza humana...

Recordo-me dos momentos que ela, assentada ao lado de seu amante, este em face oposta à sua, esforçava-se para principiar um diálogo profundo que correspondesse aos seus ímpetos avivados, intemeratos em sê-lo, que careciam de reflexo. Ousados apaixonados requerem, legitimamente, até mesmo carecem e às vezes exigem isso: precisam de conversações com seu objeto de desejo, cobiçam sua atenção, exprimem-se sob formas diversas.

Todos os modelos de posicionamento emocional e intelectual que comportam em artífices são empregados como meio de atrair-lhe a concentração, voluntária ou involuntária, no que têm a dizer e exprimir... Gestos e palavras que demonstram cortesia, ternura, afeto, amor...

Já ele não! Não retrucava suas investidas ávidas por comunicação; não revelava, ou mesmo esboçava reações sentimentais de afeição. Não se portava dessa maneira. Era calado, silencioso, quieto. Sempre fora assim, não era a primeira vez que procedia dessa forma... Sua conduta para com seus sentimentos, intimismos emocionais em geral, sempre foram reservados e discretos ao extremo, consta-se.

Doía-lhe de certa forma, quando contemplava o semblante de sua idólatra afogando-se em expectativa, saber que não estava reagindo da forma que ela esperava. Mas a força mais marcante que atuava sobre suas ações era a própria história pessoal que o justificava; as formas de se proceder em fluxos foram inseridos há tempos! Já haviam se estabelecido no decorrer de suas experiências pregressas, traduzindo–se em uma hábil perícia, ou ausência dela..., em portar-se de forma insensivelmente inexpressiva em situações como essa. Simplesmente não fruía de linguagem escorreita. Eram comportamentos e posturas vernaculares adquiridas ao longo da vida. A única que tivera.

Constituía-se como se apresentava hoje, um efeito do que fora construindo pouco a pouco no passado. Suas respostas eram escassas, quase nada: não costumava redargüir as ações investidas pelo coração alheio. Exprimia-se menos ainda e, não mudaria assim num instante, de forma iminente; ou melhor, não conseguiria tornar-se diferente do que era, mesmo que tentasse, mesmo que tentasse com esforço: era um empreendimento além de suas sumidades...    

Seu lado mais egoísta, apegado de mais a si, às vezes em detrimento cruel à ânsia do outrem, quase achava patético aquele empenho para atingir sua atenção; Certos momentos, quando sentia seus sentidos atordoados, até mesmo esmagados, pela ausência de reciprocidade, ela tentava em meio àquele ensurdecedor silêncio ensaios tímidos de cantorias e balbucias melodiosas interessados em exorcismar aquele estado de latência; ele, no entanto, chegava a considerar risívio, até mesmo digno de escárnio algumas tentativas.

Os longos e, freqüentemente, intermináveis intervalos de silêncio, permaneciam ali entre os dois, fazendo-lhes companhia, destacando-se mais que o ensejo do casal... Oportunista que é do estado de ausência de quem cala, o silêncio sugava-os: tirava principalmente dela, a graciosidade e os encantos da alma feminina apaixonada.

Ela ali ao seu lado, inerte, privada de capacidades para de algum modo agir; sem nada estar ao alcance de suas idéias, pois não tinha ao que reagir. Apesar de tudo, sentia no âmago, a proximidade de uma resolução ao impasse. Sabia que poderia oferecer uma parcela da imensidão do seu sentimento; para ela, o que não poderia acontecer jamais era a interrupção definitiva de um sentimento tão belo...

 E ele, faltando com inspirações à altura da afeição: sem querer nada realizar, nem ao menos fingir ou simular; concluía por meio de deduções óbvias que, aquelas situações cessariam imediatamente; não através de uma atitude que rompesse com tudo presenciado até o momento, mas sim, com a proximidade de um remate definitivo a tudo!

 Uma identidade gerada, e que prosperou durante uma vida, não poderia ser abandonada assim, por qualquer coisa. Era o que ele pensava.

Já foi dito certa vez, que o oposto do amor não é o ódio, e sim o silêncio. O amor limita-se às capacidades de quem o possui lhe expressar, é fato; os limites da linguagem do entusiasta demonstram e definem os limites do amor sentido.

Um, inspirado que seja, não ama por dois.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Conto: Indagado

(...)então a professora de Cânone literário propôs aos alunos que criassem um conto a partir de um primeiro parágrafo previamente definido; o que resultou de minhas veredas pelas desafiadoras trilhas literárias foi o seguinte:

Indagado                

                            

       No terceiro dia em que dormia no pequeno apartamento de um edifício recém-construído, ouviu os primeiros ruídos. De normal tinha o sono pesado e mesmo depois de despertar levava tempo para se integrar no novo dia, confundindo restos de sono com fragmentos da realidade.

       Ele sempre fora assim. Incerto quanto à realidade, questionava-se com freqüência: O que é real? O que é essa realidade no qual indivíduos interagem, agindo e reagindo ao ambiente?

       Suas propriedades perceptivas sempre foram extremamente excitáveis ao menor estímulo, sua sensibilidade era aguçada para divagações abstratas, no entanto, deixava a desejar quanto à sua opinião sobre as questões concretas da realidade, já que se desenvolvia através de pensamentos complexos e elevadíssimos que lhe fazia tender ao conflito da incerteza, sobre a fronteira do real com o virtual.

       Os amigos mais próximos e até mesmo seus interlocutores ocasionais, notavam essa forma excêntrica que se dava seu raciocínio. A maneira um tanto vaga com que ele costumava lidar com as questões concretas e práticas. Era considerado pelos outros um desvairado; não alienado, mas um divagador reflexivo.

       A inteligência aguçada permitiu-lhe conquistar uma independência financeira, possibilitando adquirir um pequeno apartamento que transmitia a ele um conforto, simplesmente, por poder chamá-lo com absoluta certeza, de seu lar.

       No entanto, todas as noites, na densidão do cume da madrugada, aquele ruído surgia de alguma direção indeterminada. - De alguma realidade paralela? - Poderia ser.

       Ele, sendo tão absorto em introspecções, não conseguia tomar uma posição certa sobre a origem do ruído. Mas lhe incomodava. Acostumado em seus devaneios a sempre caminhar sobre chão instável, fora surpreendido pela força aguda com que o ruído incessante o incomodava.

       Agora ele morava só, não havia ninguém que resolvesse essas questões tangíveis e materiais para ele. Viu-se enfim, obrigado a sobrepujar-se dos questionamentos que tanto lhe absorvia e, encarar a realidade e seus desafios. Não poderia viver  desamparado. Precisava de alguém para poder usá-la como suporte aqui na realidade. Mas agora era apenas ele. Passou a morar sozinho. E talvez, pela primeira vez na vida, algo realmente concreto sondava-lhe a atenção.

       Aquela dúvida estava torturando-lhe os miolos: que ruído era aquele? Não era um sonho, tinha certeza disso.

       Era necessária uma iniciativa, tratando-se de algo real, para ele, era um obstáculo tremendo. Nunca finalizara algo, nunca terminara o que tivera começado. O ruído manifestava-se à noite, mas havia se tornado uma obsessão para ele, passava o dia inteiro pensando no provável motivo.

       Transformou-se numa questão de vida ou morte. Talvez exagerasse. Mas a dúvida lhe cercara cada vez mais. Estava encarcerado. Condenado a tomar uma atitude imediata. Precisava dar um desfecho pois, o som, insistia.

       Naquela noite resolveu que não iria ficar perdendo seu tempo parado ali olhando para a escuridão cegante. Foi com um esforço sobre-humano, mas com grande determinação, que conseguiu se manter lúcido ao ouvir novamente aquela manifestação acústica que causava uma sensação auditiva incômoda e profunda. Não era um sonho, tinha certeza disso.

       Sua expedição particular por entre os cômodos o levava para a cozinha e, à medida que sua investigação avançava, o ruído tornara-se mais forte e presente. Quando chegou à pia de alumínio, ficou convencido que o som vinha dali. Especificamente dos canos. - Seria uma infiltração? - Não tinha como afirmar, mas poderia haver alguma irregularidade naquele sistema de abastecimento.

       Isso tinha lhe tranqüilizado; claro que não havia pensado em nada sobrenatural, mas, a simples sensação de solucionar uma tarefa, lhe deixou intimamente satisfeito. Uma sensação nova para ele, essa de solucionar problemas vulgares do mundo real.  Vanglorioso de sua perspicácia, resolveu ir deitar e entregar-se ao seu costumeiro sono pesado. Não era um sonho; agora tinha certeza absoluta.

       No dia seguinte chamaria um técnico para resolver o empecilho.  

domingo, 1 de junho de 2008

Ah, O Bicho-Homem, O Homem-Bicho...


A espécie humana, talentosíssima na prática não tão estimada da autodestruição, possui uma característica que a torna essencialmente contrastada às demais criaturas que ilustram graciosamente nossas belas paisagens naturais: a capacidade auto-analítica, que se revela por meio da possibilidade de voltar sua atenção para seus próprios botões, e dessa forma, buscar entender o caos de vetores que figuram no seu âmago (consideremos as medíocres exceções). 

No mesmo impulso, "somos” (é bom identificar meus laços parentescos) capazes de focar nossas habilidades cognitivas no meio externo, investigando os fenômenos  desordenados e confusos  que regem  o balé cósmico. Denominada "consciência", essa seria a sumidade própria dos mamíferos bípedes dotados de princípios supostamente morais. A faculdade intelectual de tomar conhecimento do dito cujo “conhecimento”.

Compreendendo duas dimensões principais: a conscientização do "eu” (incluindo o eu - lírico...), que seria o entendimento dos elementos internos, responsáveis pela celeuma dos estados emotivos etc., caracterizando assim, um estado de "reflexão", imprimindo-se através da linguagem; e a conscientização do outro: que compreende o entendimento do mundo externo, obtido através de experiências empíricas sensoriais. Usando os sentidos que nos foram conferidos com suas finalidades próprias, ou seja: confundir as funções de um sentido com a de outro pode acarretar situações desagradáveis...

Para que o sujeito obtenha o nível de escrúpulo que pode vir a alcançar a denominação de “consciência crítica”, se faz necessário o desenvolvimento de ambas as dimensões, de modo equilibrado, já que a progressão aprofundada de apenas uma das destrezas mentais, ao passo que a outra se mantenha estagnada, resultará numa visão deformada da realidade dos fatos. Desenvolvendo-se dessa forma, o indivíduo estará condenado a enxergar e compreender o mundo sob uma perspectiva distorcida. Avistará as coisas da forma que lhe convém, empreendendo atitudes que lhe parecerem convenientes; o que nem sempre pode ajudar numa relação inicialmente pensada para ser saudável...

Uma vez que a consciência cresça de forma unilateral, elaborando, por exemplo, apenas o ponto de vista focado ao meio externo, desvalorizando o entendimento pessoal, naturalmente haverá uma constante crise de identidade, submetendo-se ao juízo de alteridade, desbocando uma perda de autonomia intelectual no embate com o mundo. Podendo resultar como conseqüência, de toda essa transposição das atenções para um ponto de vista externo, uma crescente crise existencial.

Da mesma forma, a profunda interiorização do indivíduo, ocasiona um intimismo exarcebado, um fechamento empacotado do homem diante das “coisas externas”. O típico sujeito com pontos de vista gritantemente subjetivos, resultando em um exagero ego-centrista. Tratando desse assunto, me vêm à mente os versos de Sá Carneiro, poeta português:

“Perdi-me dentro de mim

Porque eu era labirinto,

E hoje, quando me sinto,

É com saudades de mim...”

Portanto, o desenvolvimento concomitante é imprescindível para uma visão coerente e comedida, que garanta uma adequada coordenação de idéias. Para uma convivência menos angustiante se faz pertinente o balanceamento de noções, que se resume no autoconhecimento dos limites intrapessoais considerando-se parte de um todo maior: o extra pessoal. Reconhecendo e elaborando seu entendimento perante as fronteiras do mundo interior, este dentro de um mundo exteriorizado.

Viver e manter a mente em níveis considerados psiquiatricamente normais é definitivamente um grande desafio... A tênue fronteira que nos separa de um diagnóstico de loucura é mais frágil do que supõe nossa vã filosofia. Como um dos pilares de nossos estudos filosóficos ocidentais, Aristóteles, um dia afirmou: “A virtude está no meio!”. Não interpretando essa sábia afirmação como "estar sempre em cima do muro", nunca tomando partido em nenhuma idéia, nem assumindo suas vocações intimistas... É um grande passo que o sujeito dá com o intuito de preservar seus raciocínios lógicos.

Podendo desse modo, dizer que, continua ostentando coerência nesse mundo corrompido por loucuras pessoais e coletivas!